Este documento tem o propósito de esclarecer e atualizar informações sobre o conhecimento técnico-científico da relação entre o SARS-CoV-2, os esgotos sanitários, a qualidade das águas superficiais e a infraestrutura urbana de saneamento.
De forma introdutória, recorda-se que os fatores que classicamente governam a transmissibilidade de agentes patogênicos por via feco-oral são: (I) a quantidade de indivíduos infectados e potencialmente transmissores; (II) a quantidade de organismos patogênicos presente nas excretas dos indivíduos infectados; (III) a cinética do decaimento dos organismos patogênicos no ambiente; (IV) a oferta de vias de exposição humana para a transmissão via feco-oral; (V) a magnitude da dose-infectante; e (VI) a suscetibilidade de infecção por parte da população.
Dentre estes fatores, no contexto da COVID-19, e com base no conhecimento técnico-científico então estabelecido em relação ao SARS-CoV-2, observa-se que:
I) A determinação da quantidade de indivíduos infectados e potencialmente transmissores do SARS-CoV-2 depende da realização dos testes na população em geral;
II) Valores de referência sobre a concentração de SARS-CoV-2 ativo ou de fragmentos de material genético presentes nas excretas dos indivíduos infectados são pouco conhecidos e ainda não completamente compreendidos e definidos. Estudos científicos em andamento indicam haver variação temporal quanto a identificação ou não da presença do SARS-CoV-2, bem como de suas respectivas concentrações em fezes de pacientes infectados. Valores de referência sobre a concentração de SARS-CoV-2 ativo ou de fragmentos de RNA presentes nos esgotos sanitários e em corpos d’água superficiais também ainda não estão definidos. Estudos científicos são conduzidos no Brasil e no mundo no sentido de que esta quantificação atenda estratégia de monitoramento espaço-temporal da concentração de SARS-CoV-2 nos esgotos sanitários e em corpos d’água superficiais. A estratégia tem como objetivo apoiar ações de vigilância epidemiológica, que desde já possam repercurtir para decisão por medidas de controle social, e que futuramente, em médio e mais longo prazos, por eventual sobrelevação da concentração de SARS-CoV-2, possa servir como indicador de recrudescimento da COVID-19.
III) Devido ao fato do ácido nucleico do SARS-CoV-2 encontrar-se revestido e envelopado por uma camada lipídica de muito fácil desestruturação e degradação, entende-se que a cinética do decaimento de sua concentração nos esgotos sanitários, principalmente no ambiente hídrico, deva ser similar ou ainda mais acelerada do que outros vírus não encapsulados, bem como de organismos que usualmente servem como indicadores de contaminação por resíduo fecal. Referências sobre a cinética de decaimento existem somente para o SARS-CoV e ainda não existem para o SARS-CoV-2.
IV) Embora não haja evidências epidemiológicas de que os esgotos sanitários sejam um veículo para a transmissão de SARS-CoV-2 via feco-oral, as eventuais rotas de transmissibilidade consistiriam nas mesmas que servem a toda a diversidade de outros vírus e organismos patogênicos que, invariavelmente, também encontram-se presente nos esgotos sanitários e na água bruta dos mananciais;
V) e VI) Como não há evidências epidemiológicas de que os esgotos sanitários sejam um veículo para a transmissão de SARS-CoV-2 via feco-oral, não faz sentido haver referência quanto à magnitude de dose-infectante, bem como a suscetibilidade de infecção por parte da população.
Organizações técnico-científicas, universidades e institutos de pesquisa nacionais e internacionais vêm se dedicando para definir orientações e diretrizes para o setor de saneamento, bem como avançar com o conhecimento até então estabelecido sobre a relação dos esgotos e das águas superficiais com o SARS-CoV-2 e a COVID-19.
Dentre as organizações técnico-científicas nacionais, destacam-se orientações e diretrizes do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia ETEs Sustentáveis (INCT ETEs Sustentáveis, https://etes-sustentaveis.org/) e da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES, http://abes-dn.org.br/?p=33406). Dentre as organizações internacionais, orientações e diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS, https://www.who.int/publications-detail/water-sanitation-hygiene-and-waste-management-for-covid-19), International Water Association (IWA, https://iwa-network.org/news/information-resources-on-water-and-covid-19/), da Water Environment Federation (WEF, https://www.wef.org/news-hub/wef-news/the-water-professionals-guide-to-the-2019-novel-coronavírus/), do Centers for Disease Control and Prevention – EUA (CDC, https://www.cdc.gov/coronavírus/2019-ncov/php/water.html), e do Watercycle Research Institute – Holanda (KWR, https://www.kwrwater.nl/en/frequently-asked-questions-covid-19/). Todas estas orientações e diretrizes são convergentes para as indicações a seguir complicadas, e por esta razão as mesmas não se encontram individualmente referenciadas.
Por outro lado, o conhecimento técnico-científico sobre a relação do SARS-CoV-2 com os esgotos sanitários e a qualidade da água, visando principalmente apoiar ações de vigilância epidemiológica e controle da saúde pública, é objeto de avanço por meio de estudos conduzidos por universidades e institutos de pesquisa nacionais e internacionais. De uma forma geral, várias destas iniciativas vêm sendo divulgadas pela mídia, destacando-se aquelas realizadas com esgotos sanitários de cidades da Holanda, Itália, França, Noruega, Suécia, Estados Unidos, Nova Zelandia, Austrália, dentre outros países. Recentemente, estudos em condução pelo INCT ETEs Sustentáveis na Região Metropolitana de Belo Horizonte e pela FIOCRUZ na cidade de Niterói são precursores de pesquisas similares no país.
Os estudos concluídos e já publicados em periódicos científicos podem ser acessados pelas referências que constam na coletânea de artigos a seguir também compilada.
Orientações e diretrizes provenientes de organizações técnico-científicas nacionais e internacionais
– Ainda não há evidências da presença SARS-CoV-2 viáveis em sistemas de esgotos sanitários.
– Não há evidências epidemiológicas de que os esgotos sanitários sejam uma via de transmissão do SARS-CoV-2.
– Parece improvável ocorrer infecção por SARS-CoV-2 através da exposição aos esgotos sanitários. Com base em dados de surtos anteriores de Síndrome Respiratória Aguda Grave – SARS e Síndrome Respiratória do Oriente Médio – MERS, entende-se que o risco de transmissão de SARS-CoV-2 pelas fezes seja relativamente baixo.
– Embora fragmentos do vírus SARS-CoV-2 sejam encontrados em fezes de pacientes contaminados, se desconhece haver potencial de infecção quando veiculado por fezes ou esgotos sanitários. O SARS-CoV-2 é parte de um grupo de vírus ao qual não se relaciona nenhuma importante rota de transmissão hídrica.
– A concentração de fragmentos do vírus SARS-CoV-2 nos esgotos sanitários e nos aerossóis respectivamente emitidos será provavelmente menor que a concentração existente em exalações orais e nasais de pacientes contaminados.
– Não há evidências de que o coronavírus sobreviva ao processo de desinfecção de água potável e efluentes. Não há procedimento específico para a inativação do SARS-CoV-2, para além da usual técnica de desinfecção. Importante observar que a desinfecção serve não somente para a inativação do SARS-CoV-2, como também para a inativação de toda a diversidade de outros vírus e organismos patogênicos que invariavelmente também encontram-se presente nos esgotos sanitários e nas águas superficiais.
– A eficácia de sabões, detergentes e desinfetantes para a inativação do coronavírus SARS-CoV-2 deve-se ao fato de seu material genético encontrar-se revestido e envelopado por uma camada lipídica de muito fácil desestruturação e degradação. Sabões e detergentes possuem surfactantes, cujas moléculas possuem afinidade por gorduras, o que facilita o desprendimento e arraste. O agente desifectante possui potencial de oxidação do invólucro proteico que constitui o SARS-CoV-2.
– O RNA do vírus SARS-CoV-2 é estável por somente alguns dias se protegido por esta camada lipídica de envelopamento. A presença da totalidade da partícula viral e, consequentemente, do organismo em forma viável, depende da manutenção da camada lipídica existente no entorno do seu invólucro proteico. A destruição da camada lipídica torna o organismo não viável e incapaz de reproduzir-se.
– A eventual presença de fragmentos de RNA desprovidos da camada lipídica de envelopamento poderá ser identificada nos esgotos sanitários, mas neste ambiente, fragmentos de RNA tendem a ser rapidamente degradados. A detecção de fragmentos de RNA do vírus SARS-CoV-2 indica que partículas do organismo estiveram presentes nos esgotos sanitários. Reitera-se ainda não haver evidências de que SARS-CoV-2 viáveis sejam transmitidos pelos esgotos sanitários.
– Referências sobre a cinética de decaimento existem somente para o SARS-CoV e ainda não existem para o SARS-CoV-2. Duan et al. (2003) reportaram a atividade infecciosa do SARS-CoV em fezes por até 4-5 dias, em temperatura de 20°C. Casanova et al. (2009) avaliaram a inativação de coronavírus em lodo de esgotos em até 6 log após 3 semanas, em temperatura de 25°C. Kampf et al. (2020) indicam que a elevação da temperatura aceleraria a inativação de vírus similares. Com base nestes estudos pode-se supor que o SARS-CoV-2 eventualmente presente nos esgotos sanitários seria eliminado durante processo de fermentação na etapa de digestão anaeróbia do lodo.
– Em função da eficácia da desinfecção, não há registro de detecção do vírus SARS-CoV-2 em água potável tratada, desinfectada e distribuída por sistemas públicos de abastecimento. Observa-se que o caso reportado pela mídia relativo ao sistema de abastecimento de água de Paris, correspondia à rede de distribuição de água não potável para consumo não humano.
– Há a preocupação com a proteção dos trabalhadores dos serviços de esgotamento sanitário, especialmente em função da emisssão de aerossóis, enfatizando-se a necessidade de uso de EPI. Não são recomendadas proteções específicas para o coronavírus, porém medidas de rotina usualmente praticadas para evitar a contaminação por outros organismos patogênicos que invariavelmente também estão presentes nos esgotos sanitários.
– A detecção do vírus com base em plano de monitoramento de pontos estratégicos da infraestrutura de esgotamento sanitário, acompanhado de estudo epidemiológico devidamente planejado e executado, poderá apoiar ações espaço-temporais de vigilância e controle da evolução da COVID-19. A estratégia encontrará grande aplicabilidade no sentido de que ações de vigilância epidemiológica possam, desde já, repercurtir para decisão por medidas de controle social, como futuramente, em médio e longo prazos, sob eventual sobrelevação da concentração de SARS-CoV-2, indicar o recrudescimento da COVID-19.
– A detecção do vírus nos esgotos sanitários depende da realização de testes baseados em técnicas moleculares de identificação de material genético (RNA).
– O método RT-qPCR (Real-time Polymerase Chain Reaction) é a técnica molecular utilizada para a identificação de material genético e detecção do vírus nos esgotos sanitários. Trata-se da medição de fragmentos de RNA (genes) do vírus SARS-CoV-2.
– O método pode também quantificá-lo, porém não avalia a viabilidade e tampouco a infecciosidade do vírus SARS-CoV-2. Durante a “Reação em Cadeia da Polimerase”, a ampliação de fragmentos genéticos permite a identificação da presença de genes do vírus SARS-CoV-2. Trata-se da mesma técnica utilizada para detecção em pacientes infectados por SARS-CoV-2. O método ainda encontra aplicabilidade em diferentes áreas do conhecimento, tais como clínica diagnóstica em geral, microbiologia ambiental, segurança alimentar, etc.
– Estudos científicos realizados até o momento enfatizaram a reprodução de métodos analíticos para a concentração do vírus SARS-CoV-2 nos esgotos sanitários e para o isolamento do RNA a partir deste concentrado. Outros estudos dedicam-se ao desenvolvimento de novos métodos de identificação e quantificação do SARS-CoV-2 nos esgotos sanitários.
– Estabelecidas a metodologia e os protocolos de coleta e acondicionamento de amostras e de processamento das análises, o desafio maior das pesquisas consistirá em quantificar temporalmente a carga viral do SARS-CoV-2 presente nos esgotos sanitários, considerando diferentes extratos populacionais, diferentes condições ambientais e graus de qualidade da infraestutura urbana de saneamento, e em estabelecer a relação entre esta carga viral e dados epidemiológicos.
Por Isaac Volschan Junior.
ABES-RJ indica: Artigo “Projeto de Despoluição do Rio Sena para as Olimpíadas de Paris 2024”
A ABES-RJ indica aos associados o artigo “Projeto de Despoluição do Rio Sena para as Olimpíadas de Paris 2024″, produzido pelos alunos do curso sobre